Traduzindo a Transição, dois anos depois: como estão Wendlley e Jakob?

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Wenddley e Jakob conversaram novamente com a SBS em Português, depois de dois anos. Source: Supplied

Em 2022, no podcast Traduzindo a Transição, a SBS em Português entrevistou a Wendlley e o Jakob, ambos passando por uma transição de gênero na Austrália. Agora, em 2024, nós os convidamos novamente para que ambos possam compartilhar um pouco mais sobre as suas jornadas - o que mudou de lá para cá, quais caminhos foram seguidos e, principalmente, quais lições foram aprendidas.


A brasileira Wendlley, de 35 anos, iniciou sua transição de gênero, do masculino para o feminino, há quase seis anos, em Melbourne. Já o australiano Jakob, de 20 anos, começou a sua transição de gênero, do feminino para o masculino, aos 12 anos de idade, com o apoio da família brasileira, em Gold Coast.

Nem toda pessoa trans passa por cirurgias

É importante deixar claro que nem todas as pessoas trans passam por cirurgias de resignação de gênero. Além disso, procedimentos cirúrgicos são realizados somente em maiores de 18 anos.

No caso de Jakob, ele está muito feliz com a sua decisão: “Em junho de 2022, aos 18 anos de idade, eu fiz uma mastectomia dupla (também conhecida como cirurgia de topo), que significa que retirei os seios do meu corpo".

"Eu não tive nenhuma dúvida, nem fiquei com medo de me arrepender no futuro. É difícil explicar, mas nunca senti que meus seios fossem parte do meu corpo, então, como posso sentir falta de algo que nunca foi meu para começar?"
Eu não tive medo nem receio de me arrepender da mastectomia. Nunca senti que os seios fossem parte do meu corpo.
Jakob, homem trans
"Sinto que é um tipo de dissociação que desenvolvi para lidar com o corpo em que me encontro. Já se passaram dois anos desde minha cirurgia e ainda admiro meu peito no espelho do jeito em que está agora, e acho que nunca vou me arrepender”, disse ele ao podcast.

A Wendlley deixa claro que cada indivíduo é único e decide como trilhar a sua própria transição.

“Eu acho que cirurgia é uma coisa muito pessoal de cada pessoa trans. Algumas vão querer fazer, outras não. E não é isso que vai determinar o quão longe elas estão no momento de transição. Eu, por exemplo, fiz algumas cirurgias que ajudaram muito na minha confiança, de me sentir segura com meu corpo, mas eu não gosto de falar sobre a cirurgia de resignação sexual, por exemplo. Isso porque eu acredito que não é fazendo esse procedimento que vai definir que alguém seja mais mulher ou menos mulher, mais homem, ou menos homem”.
Cirurgia é algo pessoal de cada pessoa trans. Não é isso que determina o momento da transição.
Wendlley, mulher trans
Além disso, ela diz que perguntas sobre cirurgias são totalmente inadequadas caso você não possua intimidade com a pessoa.

“Quando nós falamos sobre cirurgia de resignação sexual, nós reduzimos pessoas trans apenas a genitalia, e nós somos muito mais do que a genitália - nós somos parte da família, nós somos parte da sociedade, nós somos parte do seu círculo de amigos, nós somos parte do seu trabalho. Então, falar sobre genitália é uma coisa muito pessoal e que não deveria ser abordado com naturalidade, porque você não pergunta sobre a genitália de uma pessoa hétero ou cisgênera quando conversa com ela, então, isso deve também valer para uma pessoa trans”.

Aprendizados da transição

Há quase três anos o Jakob nos disse, em sua primeira entrevista, que se tivesse vocabulário e sabedoria aos 4 anos de idade, ele teria falado mais cedo que era trans para os seus pais, pois ele sempre soube como se sentia, só não conseguia se expressar com palavras em relação à sua identidade de gênero.
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Jakob aos 12 anos ao lado da mãe, quando iniciou o processo de transição. Source: Supplied
“Percebi que agora eu estou mais confortável sendo como sou. Quando eu tinha 17 anos e estava na escola, eu me apresentava de uma forma que achava aceitável que os outros me percebessem como homem. Mas agora, eu sinto que consegui deixar isso de lado e me apresentar de uma forma que é aceitável e natural para mim".

"Atualmente, eu estou estudando Idiomas e Linguística na universidade. O gênero é uma parte importante da linguística e aprender sobre ele ajudou a moldar minha relação com o conceito de gênero. A universidade tem sido uma boa experiência, pois eu vejo muitas pessoas como eu, e me sinto menos alienado do que na escola, onde eu era a única pessoa trans”.

Já a Wendlley nos contou na sua primeira entrevista que, aos 16 anos de idade, precisou sair do armário como um homem gay. E que aos 32 anos teve que sair do armário como uma mulher trans. Ela também confidenciou que desde criança já sabia que havia algo de diferente com ela, pois não se identificava com o sexo que havia sido lhe designado no nascimento.

Agora, aos 35 anos de idade, ela diz: “Só depois de anos eu percebi que se eu não fosse realmente quem eu era por dentro e transparecesse isso para fora, eu não seria feliz por completo. Foi só assim que eu reparei que só eu conseguiria ser feliz sendo eu mesma”.

Exposição pós-entrevista para a SBS em 2022

A repercussão da entrevista de quase três anos atrás rendeu boas experiências para a Wendlley e o Jakob.

Em conversa no podcast, a Wendlley nos contou que recebeu algumas mensagens nas suas redes sociais e que ficou bastante feliz com isso.

“A maioria das mensagens foram muito positivas com pessoas falando que eu era uma inspiração, e me agradecendo por ter compartilhado a minha experiência também. Algo que eu achei legal foi o fato de a maioria das pessoas que me falaram isso eram heterossexuais. Então, eu me sinto muito grata por ter compartilhado a minha história e ter recebido tantas mensagens positivas".
A maioria das mensagens foram positivas, com pessoas falando que eu era uma inspiração, e me agradecendo por ter compartilhado minha experiência.
Wendlley, mulher trans
"Eu conversei com outras pessoas LGBTQIA+ depois disso e compartilhei a minha entrevista com elas. Teve uma pessoa trans que estava incerta sobre começar a transição, pois estava com medo do futuro e medo da reação das pessoas quando ela transicionasse. Mas depois de ela ver a minha entrevista, ela me agradeceu muito pelas nossas conversas. E ainda disse que minhas experiências eram muito parecidas com as dela. E foi uma experiência muito positiva pra mim também de ter inspirado e ajudado alguém que estava na mesma situação que eu estive alguns anos atrás, no começo da minha transição”, disse Wendlley.

Já o Jakob teve uma experiência parecida em relação à repercussão positiva da matéria.

“Eu compartilhei a entrevista da SBS com pessoas que eu sabia que a receberiam bem, e além disso, alguns dos meus professores me disseram que tinham visto a minha entrevista e que estavam orgulhosos de mim. A entrevista também ajudou a desencadear conversas em meu grupo de amigos sobre pessoas transgêneras e essas conversas foram úteis para o entendimento deles sobre o tema”.
A entrevista ajudou a desencadear conversas sobre pessoas trans em meu grupo de amigos e no entendimento deles sobre o tema.
Jakob, homem trans
Ser uma pessoa trans no Brasil e na Austrália

Tanto no Brasil como na Austrália uma pessoa trans não precisa passar por cirurgias para poder alterar o seu nome e sexo nos seus documentos oficias.

Vale ressaltar que Nova Gales do Sul foi o último estado australiano a mudar a lei, agora em Novembro de 2024, em relação a isso. Para Jakob, isso representa um avanço social, porém, ainda há muitos direitos a serem conquistados.

“Pessoalmente, minha experiência de transição na Austrália foi muito tranquila. Sou grato por existirem leis para apoiar pessoas como eu, mas ainda assim é uma faca de dois gumes. Por exemplo, o projeto de lei em NSW que permite que as pessoas mudem de nome e gênero sem cirurgia é um grande avanço, mas deveria ter sido sempre assim, é o mínimo necessário”.
Minha experiência de transição na Austrália foi muito tranquila. Sou grato por existirem leis para apoiar pessoas como eu.
Jakob, homem trans
Apesar do Jakob achar que a sua experiência com a transição tenha sido tranquila, ele reconhece que, seja no Brasil ou na Austrália, ainda há poucas informações disponíveis sobre o tema. E isso, consequentemente, acaba fazendo com que esta comunidade assuma o papel de educadora sobre o assunto.

“Não há recursos ou meios de comunicação convencionais suficientes para educar as pessoas sobre questões trans ou mesmo sobre como falar sobre elas. Essa escassez de informações faz com que muitos de nós assumam o papel de educadores. Eu não me sinto obrigado a responder às perguntas de ninguém, mas quando as pessoas abordam o assunto com respeito, respondo a toda e qualquer pergunta na esperança de normalizar o que é ser transgênero”.

A Wendlley diz que nunca teve nenhum problema relacionado a sua segurança e integridade física por ser uma mulher trans aqui na Austrália. Porém, ela admite que a realidade do Brasil é diferente daqui.

“Eu nunca me senti insegura por ser uma mulher trans aqui na Austrália. Quando eu fui para o Brasil durante minhas férias, eu também não me senti insegura por ser uma mulher trans. Mas eu sei que isso não é a realidade de toda mulher trans no Brasil e que viver lá é muito mais difícil. E tem essa coisa do Brasil ser o país que mais mata mulheres trans no mundo por ano, mas também é país que mais consome pornografia trans. Então, é uma contradição que não se explica naquela sociedade machista e transfóbica”.
Eu nunca me senti insegura por ser uma mulher trans aqui na Austrália.
Wendlley, mulher trans
Apoio na decisão e no processo

Iniciar uma transição de gênero pode ser um caminho difícil de percorrer. Mas imagine iniciar este processo em um país em que você não tenha o domínio do idioma ou não compreenda o funcionamento do seu sistema público de saúde. E mesmo que você entenda perfeitamente, as vezes, ainda é preciso ficar traduzindo os seus sentimentos para a sua família e amigos.

Para a Wendlley, procurar por apoio profissional é fundamental para entender o processo, pois por muitas vezes, a própria família pode querer te fazer desistir da transição.

“O único conselho que eu acho que eu poderia dar a uma pessoa trans é que faça uma terapia com psicólogos para entender a si mesmo. O que está faltando na sua vida? O que você quer alcançar? Quem você quer ser realmente? Porque é um processo muito grande pra você se aceitar, entender quem você é".

"Eu me enxergava como mulher desde pequena mas a minha família era muito conservadora e tentava me limitar achando que isso iria me proteger”.
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Jakob teve o apoio da família desde o início do processo de transição. Source: Supplied
Já para o Jakob, se rodear de pessoas que te amam é fundamental. E claro, ele recomenda que ninguém se compare com outras histórias, pois cada indivíduo é único e tem o seu próprio caminho para trilhar.

“Tente não se comparar com pessoas cis ou outras pessoas trans, pois isso só piora a disforia, que é o jeito como você enxerga a si e ao seu corpo. Pense em você como um pioneiro, seja em sua escola, família ou local de trabalho. E mais: Se você se sentir sozinho nisso, garanto que não está”.
Se você, pessoa trans, se sentir sozinha nisso, garanto que não está.
Jakob, homem trans
Violência contra a comunidade trans no mundo

O , uma iniciativa global que monitora os assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso, relatou que mais de 350 pessoas foram mortas entre 1º de outubro de 2023 e 30 de setembro de 2024.

No entanto, acredita-se que esses números sejam muito maiores, já que muitos incidentes não são reportados ou são mal reportados.

Maioria dos jovens não se arrepende da transição

Segundo um estudo científico publicado pelo , um dos mais prestigiados do mundo, a maioria dos adolescentes e jovens trans que decide passar por uma transição de gênero fazendo uso de hormônios não se arrepende da decisão - o nível de satisfação é de 97% nesta faixa etária.

“Não existe um cronograma universal ao qual uma pessoa trans deva aderir para fazer a transição corretamente. Estou feliz com a idade em que comecei a fazer a transição (aos 12 anos de idade). Não há pressa nem prazo certo para descobrir quem você é. Especialmente porque, infelizmente, algumas pessoas não têm as informações ou os recursos onde moram para acessar os serviços de gênero ou mesmo para saber que essa é uma opção”, diz Jakob.
Não há pressa, nem prazo certo, para descobrir quem você é.
Jakob, homem trans
A Lei de Discriminação por Identidade de Gênero (Sex Discrimination Act) proíbe a discriminação com base na identidade de gênero em áreas como educação, emprego, saúde e serviços públicos na Austrália. Então, como disse antes o Jakob, se você se identifica como uma pessoa trans, saiba que não está sozinho, pois o país oferece leis e serviços para te proteger e amparar.

“Esse é um conceito desconhecido para muitas comunidades, mas as pessoas transgêneras existem há milhares de anos, portanto, se você se sentir sozinho nisso, garanto que não está. As pessoas podem duvidar de você e fazer com que se sinta invisível, mas lembre-se de que aqueles que se importam realmente com você irão te apoiar, te entender e te amar de toda e qualquer maneira”, conclui Jakob.

Traduzindo a Transição (Transitioning in Translation) é um podcast que você pode ouvir em português e inglês.
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Traduzindo a transição

SBS Portuguese

23/03/202202:42
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