O que pode levar uma pessoa a voltar a uma sala de aula depois de muitos anos? No caso da Laura Napoli, 78 anos, da Clélia Padrão, 77 e do Marcos de Miranda, 76, que frequentam o mesmo curso de inglês em Gold Coast, a motivação, além de aprender a língua do país para o qual resolveram se mudar, depois de os filhos terem adotado a Austrália como casa, foi socializar, se integrar mais à comunidade e criar uma certa autonomia e independência da família.
A SBS em português conversou com os três alunos aplicados do curso gratuito de inglês oferecido pelo Centro Comunitário de Varsity Lakes, em Gold Coast, e também com as filhas da Laura, Luciana Wright, e da Clélia, Kelly Padrão West.
Relação com a Austrália
A tradutora Luciana Wright, na Austrália há 25 anos, se lembra bem da primrira vez que a mãe, Laura, veio visitá-la no país da Oceania, em 1999.
"Meu pai, minha mãe e uma amiga vieram para Gold Coast a passeio, ficaram um mês e descobriram como era a vida aqui. Foi uma viagem curta, de férias, mas muito elucidativa para eles do que era a minha vida aqui na Austrália", conta Luciana.
Laura diz que as primeiras impressões foram as melhores possíveis: "Achei o lugar maravilhoso e vi que ela estava se dando muito bem aqui. Então eu fiquei mais tranquila e voltei para o Brasil cheia de vontade de vir para cá de novo. E a vontade foi crescendo".
Depois da primeira visita, Laura conta que ela e o marido vinham todo ano visitar Luciana, principalmente depois que os netos nasceram. "Então no ano passado [2022] resolvemos vir para ficar, porque chegamos à conclusão de que no momento a vida é bem melhor aqui do que onde morávamos, onde as coisas estão bem difíceis".
No ano passado [2022] resolvemos vir para ficar, porque chegamos à conclusão de que no momento a vida é bem melhor aqui [na Austrália] do que onde morávamos.Laura Napoli, 78 anos, aluna do curso de inglês
A obstetriz Kelly Padrão West, na Austrália há 24 anos, diz que o pai era um imigrante português que foi para o Brasil ainda criança, e que sempre a incentivou a morar em outro país. Ela conta que quando decidiu morar na Austrália, ele falou: "Você não volta. A gente que vai". Em 2005, ele e a Clélia, mãe da Kelly, vieram visitá-la pela primeira vez. Ficaram três meses e viajaram bastante.
Sobre o que achou da Austrália num primeiro momento, Clélia relata: "Eu achei muito linda, com praias maravilhosas. Aqui tem várias qualidades de comida, coisas que eu não conhecia, porque foi a minha primeira viagem para mais longe do Brasil. Só tinha visitado países da América do Sul até então".
Ao falar da decisão de vir morar na Austrália, Clélia diz que tinha muitos amigos e uma vida "maravilhosa" no Brasil. "Mas eu pensei: os amigos tem família, tem a vida deles, e a pessoa mais velha precisa de alguém perto. Aqui tenho minha filha, meus netos, meu genro. Então eu decidi que eu tinha que olhar para esse lado do acolhimento da família. Também gostei muito da Austrália, e o bom que é o clima nosso do Brasil".
A pessoa mais velha precisa de alguém perto. Aqui tenho minha filha, meus netos, meu genro. Então decidi me mudar para cá, até porque gosto da Austrália.Clélia Padrão, 77 anos, aluna do curso de inglês
Marcos conta que quando sua filha Tatiana resolveu vir morar na Austrália, 12 anos atrás, ele achou um "desastre". "Ela estava no último período da faculdade de Direito e abandonou tudo para vir. A gente não conhecia nada da Austrália, não sabia como seria aqui. Eu fiquei seis meses sem falar com ela. E aí, de repente, a minha outra filha, Gabriela, veio também, e elas não voltaram mais".
Ele diz que depois disso teve que vir para o país para ver como era a vida das filhas aqui. "Vim e me apaixonei. Fiquei impressionado com o lugar, com a receptividade das pessoas, a fauna, as praias. Achei lindo, e as pessoas muito solidárias".
Vim [para a Austrália] e me apaixonei. Fiquei impressionado com o lugar, a fauna, as praias. Achei lindo. E as pessoas muito solidárias.Marcos de Miranda, 76 anos, aluno do curso de inglês
Entre idas e vindas e com algumas visitas aos países da Ásia, na época em que tinha um visto que precisava sair da Austrália a cada três meses para poder voltar ao país, Marcos conta que acabou resolvendo ficar de vez.

Marcos com as filhas Tatiana e Gabriela, e os netos em Gold Coast, cidade que adotou como casa depois de alguns anos que as filhas estavam morando lá. Source: Supplied
Laura conta que tinha apenas o "inglês de colégio", e que quando soube que a filha ia fircar morando na Austrália se interessou em aprender mais a língua e fez alguns cursos online no Brasil.
"Eu já vim com uma noção do inglês, sabendo me comunicar. Depois que resolvi ficar, procurei o curso de inglês no centro comunitário [de Varsity Lakes, em Gold Coast], e lá temos a oportunidade de conversar com gente de vários países. Eu acho isso muito interessante e tenho melhorado a minha comunicação com as pessoas".
Temos a oportunidade de conversar com gente de vários países. Eu acho isso muito interessante e tenho melhorado a minha comunicação com as pessoas.Laura Napoli, 78 anos, aluna do curso e inglês
O centro comunitário de Varsity Lakes oferece aulas gratuitas abertas à comunidade local, uma vez por semana, com duas horas de duração. O número de alunos brasileiros aumentou bastante nos últimos meses, devido principalmente à divulgação dos próprios alunos.
Laura descreve as aulas: "Nós temos um material fornecido pelo centro comunitário e livros para ler. Eu já consigo ler em inglês, então eu elas me dão muitos livros interessantes. Para quem chega, são aqueles livrinhos fáceis, de criança. A gente é muito estimulada a trocar ideias em inglês, aprendemos o inglês australiano, as gírias australianas, porque o inglês que a gente conhece é o inglês americano".
E destaca: "As professoras são muito simpáticas, muito amigas, e o que eu acho mais interessante mesmo é que a gente se relaciona ali com gente do mundo inteiro: Japão, Angola, Índia, cada um com seu sotaque".

Laura na foto em Sydney com a filha Luciana e os netos. Ela se mudou para a Austrália em 2022, depois de vir como visitante ao país por mais de 20 anos. Source: Supplied
Os homens são minoria no curso, mas Marcos é um dos alunos mais frequentes e interessados, apesar de dizer que nunca gostou de aprender inglês. "No ginásio eu sempre reprovava em inglês. Não me interessava, achava chato. Agora nessa idade eu passei a me interessar. Frequento esse curso há mais de um ano e não falto uma aula. Uma vez que tive que faltar porque estava gripado, senti muito, e não vi a hora da semana passar para poder ir à aula".
Nessa idade eu passei a me interessar [em aprender inglês]. Frequento esse curso há mais de um ano e não falto uma aula.Marcos de Miranda, 76 anos, aluno do curso de inglês
Além do aprendizado
Ao falar da importância do curso para os pais de brasileiros que ainda não dominam o inglês, Luciana explica: "Para a saúde mental dos pais que estão aqui é muito importante frequentar um espaço fora da casa da família. Eu acho que é um momento de liberdade para eles. É um momento de individualidade, em que eles se sentem construindo alguma coisa individualmente, e não ficando apenas como um 'satélite' só em volta da família. Se formam muitas amizades. Então tem sido muito válido para minha mãe, especialmente em termos de saúde mental e social".
Para a saúde mental dos pais que estão aqui é muito importante frequentar um espaço fora da casa da família. É um momento de liberdade, de individualidade para eles.Luciana Wright, tradutora, filha da Laura Napoli
Sobre a experiência da Clélia, a filha Kelly diz: "Para minha mãe o maior problema de ficar na Austrália sempre foi o medo de perder a independência, por não dominar o idioma. Ela é super social, adora conhecer pessoas, conversar. Eu senti uma diferença grande depois que ela começou a fazer o curso. Ela melhorou demais a conversação com meu marido, com meus filhos. Hoje ela é mais corajosa e se arrisca. Vai no mercado, faz compra sozinha".
E completa: "Eu acho que imigrar nessa idade não deve ser fácil. Eu vim para cá com pouca raiz. A raiz que ela já tem no Brasil é muito grande. Eu tiro meu chapéu para ela, estou muito orgulhosa dela frequentar o curso. Tenho visto uma melhora incrível e recomendo para todos os filhos que estão aqui que incentivem os pais a se juntarem a esse programa incrível da Austrália".
Imigrar nessa idade não deve ser fácil. A raiz que ela tem no Brasil é muito grande. Eu tiro meu chapéu para ela, estou muito orgulhosa.Kelly Padrão West, obstetriz, filha da Clélia Padrão

Clélia na foto com a filha Kelly, que mora há 24 anos na Austrália e diz admirar a mãe por ter se mudado de país com mais de 70 anos de idade e estar estudando inglês. Source: Supplied
"O fato desse curso, desse tipo de atividade estar sendo exposto nessa comunidade do Facebook também encoraja pessoas que estão lá no Brasil que têm vontade de visitar a Austrália, mas ficam receosas em encontrar um ambiente onde não se relacionam com outras pessoas. Então, além de estimular as pessoas que já estão aqui a frequentarem, o intuito é também comunicar aos pais que estão no Brasil, que existe uma vida social pra eles aqui também", explica Luciana.
Ela ressalta que esse tipo de aula gratuita de inglês acontece em centros comunitários de diferentes cidades da Austrália, que as bibliotecas públicas geralmente oferecem rodas de conversação, e que algumas igrejas evangélicas e católicas também promovem círculos de conversa.
Superação
Um grande entusiasta do curso que frequenta, Marcos diz que aconselha a todos, mesmo aqueles que ainda não vieram para a Austrália, a vir e participar desse tipo de atividade. "Saber que tem uma coisa assim dá uma sustentação pra sua autoestima, sabe? Você vai crescendo, vai aprendendo. Para mim isso funcionou bem. Eu achava que não seria capaz de coisas que eu já faço hoje".
Esse tipo de atividade dá uma sustentação para sua autoestima. Você vai crescendo, aprendendo. Eu achava que não seria capaz de coisas que eu já faço hoje.Marcos de Miranda, 76 anos, aluno do curso de inglês
Clélia diz que sua ideia é continuar frequentando o curso. "No Brasil eu ando sozinha em tudo que é lugar. Aqui ainda não tive coragem de pegar o ônibus porque não falo direito, então ainda não criei coragem de sair sozinha. Mas para o próximo ano vou estar pronta para fazer isso".
Laura, que já frequenta o curso há algum tempo e estimulou várias pessoas a se juntarem a ela, relata: "A gente vê pessoas que chegam lá sem conseguir se expressar, sem conseguir falar nada. O tempo vai passando, elas vão melhorando. Quem tinha vergonha de falar, não tem mais, e é aplaudido pelos outros quando fala alguma coisa. Todos festejam o progresso de cada um".
E conclui: "Tem alunos de mais de 70, 80 anos, e todos acabam virando crianças no curso. A gente sai para passear, sai para dançar. Quem chega caladinho, logo se desinibe. É muito bom. Eu acho que todo mundo deveria participar de uma experiência como essa. A gente revive, rejuvenesce".
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