Foi uma comunhão gerada pela indignação e pela necessidade de criar esperança em resposta à atrocidade cometida por dois terroristas franceses oriundos da Argélia, que às 11h30 da manhã de quatro dias antes daquela colossal manifestação em Paris pela liberdade, num 7 de janeiro como hoje – há 10 anos, esses terroristas – os irmãos Kouachi, subiram ao 2º andar de um prédio de uma até então – quase anónima rua de sentido único no 11º bairro de Paris, Rue Nicolas Appert.
Nesse 2º andar funcionava a redação de um jornal satírico crescido na tradição libertária do maio de 68 – radicalmente laico – e gozão – desenfreadamente irreverente.
O Charlie Hebdo, nos desenhos de 1ª página, tinha publicado caricaturas de Maomé, em modo que enfureceu o fanatismo islâmico que se pôs a gritar: blasfêmia!
Os dois fanáticos terroristas assassinos entraram na sala de redação do Charlie Hebdo. A quarta-feira era dia de reunião. Os desenhadores, os ilustradores, os jornalistas, o copy desk, o secretariado.
Os dois assassinos entratram, e durante um minuto e 49 segundos não pararam de fazer sangue. Descarregaram todas as munições de duas kalashnikov sobre quem ali estava. Mataram 10 dos e das do Charlie Hebdo, um guarda costas e um policial com quem se cruzaram na fuga. Ainda iriam matar uma agente da policia municipal.
O Charlie Hebdo era o jornal de alguns poucos milhares de pessoas – havia quem não gostasse daquele humor – havia quem achasse que o jornal tinha ficado para trás no tempo. Mas perante a barbárie naquela redação, a onda de choque foi um bom tsunami. O sobressalto foi geral – nunca visto. Propagou-se o espírito Charlie a clamar não ao terrorismo, com determinação de defender a liberdade de expressão.
Os números fazem consenso. No sábado a seguir aquela quarta-feira de terror, 4 milhões de pessoas – o nunca visto, encheram o boulevard Voltaire, o Du Temple, o Magenta. Os grandes boulevards de Paris, as grandes avenidas que levam à enorme praça da república.
O cortejo principal, encabeçado por chefes de estado e de governo. No centro da primeira fila o presidente Hollande e a chanceler Merkel. E logo ao lado deles era possível ver, juntos a desfilar, o presidente da autoridade palestiniana, Macmud Abbas, e o primeiro-ministro de Israel – que nesse tempo, há 10 anos, já era Netanyahu.
Por todo o mundo – 'Eu sou Charlie' ficou palavra de ordem a santuarizar a liberdade de expressão. Então toda a gente aparecia. Parecia unida contra o ódio, contra a intolerância, contra a barbárie fanática. O espirito Charlie – de liberdade, parecia semeado e a germinar. O Charlie Hebdo – passou de 30 mil exemplares habituais para 8 milhões que esgotaram naquele sábado seguinte.
Mas afinal a França tinha neste dia, de há 10 anos, entrado num túnel de pavor terrorista. Veio em dezembro o inferno no Bataclan – 89 mortos. O camião terrorista na marginal de Nice – mais 86 mortes, centenas de feridos. E o terror assassino dos fanáticos propagou-se.
Aquela ilusão – somos todos Charlie, contra o ódio, contra a intolerância, pela liberdade, afinal evaporou-se muito. Mas os sobreviventes do Charlie,10 anos depois continuam a desafiar-nos. Para que com uma gargalhada continuemos a ser todos do espírito Charlie, a combater o ódio, a defender a liberdade.
Para ouvir, clique no 'play' desta página, ou ouça no perfil da SBS Portuguese no seu agregador de podcasts preferido.
Siga ano , e ouça . Escute a às quartas-feiras e domingos.
Pode também fazer o download gratuito do aplicativo SBS Audio e siga SBS Portuguese. Usuários de iPhone – baixe o aplicativo aqui na Usuários de Android – baixe o aplicativo aqui no